UM OLHAR SOBRE KARDEC
Nadja do Couto Valle
I. Todo mês e todo dia
celebramos Kardec quando estudamos a Doutrina Espírita, quando alargamos o
descortino das compreensões mais dilatadas sobre os “comos” e os “porquês”, os
motivos e conseqüências da vida e da morte, suas leis e fatos, forças e fenômenos,
bem como os da natureza e dos sentimentos humanos;
sobre o reconhecimento da Paternidade Divina e da comunhão universal de todos
os seres; sobre a mediunidade. E quando praticamos a mediunidade – celebramos
Kardec!
E o fazemos do modo como
certamente mais agrada ao mestre de Lyon, sem alardes nem fanfarras, com disciplina e rigor metodológico, sinceridade de propósitos
e desejo de servir e progredir, boa vontade e o cuidado de preservar a
impessoalidade e a pureza doutrinária do Espiritismo.
II. A Tarefa
No entanto, devido ao zelo na
busca dessa preservação, frequentemente Kardec é referido como sendo “apenas” o
Codificador, “só” o Codificador. Mas um breve momento de reflexão nos informa
que codificar é colocar sob um código,
dispor, arrumar, grupar idéias afins; formatar, disciplinar idéias e
procedimentos visando constituir um corpus teórico com a necessária garantia de
coerência interna e externa. Isto será pouco?
A extensão e a natureza do
material a ser codificado podem apresentar desafios adicionais à tarefa. No
caso de Kardec, o material chegou-lhe de várias localidades do planeta, em
muitos cadernos com apontamentos mediúnicos. Diante desse desafio, sua
habilidade no trato de seis sistemas lingüísticos, e também a sua capacidade de
organização lógica do pensamento e de identificar a essência de cada
comunicaçao e de cada assunto, certamente muito o ajudaram a grupar aqueles
apontamentos em grandes blocos de idéias e princípios.
Valeram-lhe também, por certo,
sua formação erudita e vasta cultura geral, seu bem desenvolvido raciocínio
filosófico (que é diferente de conhecerinformações sobre história da filosofia) e a
capacidade inegável, encontrada em sua mais alta expressao entre os grandes
professores como ele: a de perguntar. Mas de perguntar? Sim, a de perguntar.
Muitas vezes, em Ciência e principalmente em Filosofia, isto é particularmente
verdadeiro: mais vale uma boa pergunta do que uma boa resposta. É por isto que
podemos ter a segurança inabalável de poder dizer que todas as nossas perguntas
estão respondidas pelo Espiritismo. Porque Kardec foi capaz de fazer as
perguntas certas, que esgotam todos os assuntos, que antecipam todas as conquistas
nos vários campos do conhecimento e atuação do homem, que atendem à saudável
curiosidade daquele que, em qualquer idade cronológica ou espiritual, quer
aprender, esgotando os assuntos em suas nuanças e emprestando ao cotidiano
humano na Terra a importância da grandeza das Leis Divinas, alçando-o,
portanto, ao nível das importâncias transcendentais.
E, além disso, Kardec aliou a
esse tipo superior de pergunta, que necessariamente não tem que vir sob forma
interrogativa, a precisão da organização lógico-dedutiva, seqüência e dosagem
no trato do conteúdo que tinha em mãos. Isto tudo sem violentar o próprio
universo de cada área do conhecimento humano e preservando a clareza didática
imprescindível a qualquer educador ou obra que pretende ensinar.
Tudo isto certamente não é pouco
e já o torna o grande Codificador.
III. O Método
Mas há ainda uma outra
característica extraordinária do grande Mestre de Lyon: o Método. Buscando
analisá-lo, precisamos considerar o clima da segunda metade do século XIX, em
que se respiravam grandes inovações nos vários campos do conhecimento humano:
Biologia, Física, com destaque para a área da energia, Química, Astronomia,
Matemática, Estatística, etc.
IV. Angulações na Abordagem ao
Conhecimento
Por falar em conhecimento, há que
se lembrar a discussão, pela Filosofia, sobre a origem, a natureza e a extensão
do conhecimento ou das possibilidades de conhecimento.
4.1 – A origem do conhecimento
está nos sentidos, na experiência, segundo o Empirismo, ou na razão, para o
Racionalismo, enquanto que o Criticismo de Kant, para o qual convergem as duas
vertentes anteriores, assume uma posição relativista quanto ao conhecimento:
aceita o valor e a infalibilidade do conhecimento humano dentro dos limites da
experiência, mas considera-o inadequado para transcender esses limites, que são
o domínio da razão prática, com os imperativos categóricos a fundamentar esse
campo que é o da moral.
4.2 – A natureza do conhecimento
é definida pelo tipo de relação que se pode estabelecer com o que se quer
conhecer, como exemplificam as chamadas ciências humanas e ciências físicas.
4.3 – A extensão do conhecimento
diz respeito à possibilidade de podermos atingir o absoluto e a natureza íntima
das coisas, inclusive Deus e a alma, como estatui o chamado dogmatismo de
Platão e Hegel; ou se nosso conhecimento nos limita ao mundos dos fenômenos,
como postulam o agnosticismo e o positivismo de Kant e Comte, não nos
autorizando, portanto, a nos pronunciarmos sobre os problemas fundamentais da
natureza da matéria, da essência e da imortalidade da alma humana, e da
existência de Deus.
Mas, na esteira do tempo,
desgastaram-se a vertente do Empirismo de John Locke, datado do século XVII,
que postula que todo conhecimento provém dos sentidos, na linha aristotélica, e
que possibilitou o Positivismo de Comte, e a vertente do Racionalismo, com
destaque para Descartes, que postula que todo conhecimento provém da razão.
Esgotadas as possibilidades investigatórias das duas correntes, de uma certa
forma estavam paralisadas a Filosofia e a Ciência na Terra, até que o
pensamento de Kant veio resolver a questão, conciliando criativamente esses
dois caminhos.
Quanto à natureza do
conhecimento, importa considerar uma espécie de “personalidade” de cada área de
investigação, mas, no caso do século XIX, as chamadas ciências humanas foram
desenvolvidas, de um modo geral, sob a ótica da psicologia social de Auguste
Comte, que propunha o desenvolvimento delas regido pelo vezo ou angulação das
ciências físicas, aplicando as leis destas àquelas, observados os experimentos
de laboratório e de mensuração precisa.
Quanto à extensão do
conhecimento, no universo intelectual dominado pelo Empirismo e pelo
Positivismo, o limite era o da constatação no laboratório, ficando, portanto,
fora de suas cogitações o que não pudesse ser suscetível de análise pelos
equipamentos e procedimentos laboratoriais. Nesse âmbito incognoscível estariam
a existência e a natureza de Deus, a natureza e a imortalidade da alma e a
natureza da matéria. Não é a esfera do ateísmo que nega Deus, mas a do
agnosticismo, que admite sua impossibilidade de penetrar o conhecimento de tais
coisas, cuja natureza é diversa da de seus objetos e conhecimento do mundo
físico. Contrapõe-se ao dogmatismo, com destaque para Platão, que postula que é
possível conhecer a essência das coisas, inclusive Deus e a alma.
Todo o ambiente no qual Kardec
estava mergulhado era de cunho, influência e domínio positivista, tendo sido
ele próprio formado nesse ambiente que lhe forjara o rigor científico; mas este,
na intimidade do Prof. Rivail, foi conciliado com as inspirações humanas do
universo educacional de Pestalozzi.
V. O Desafio e a Solução
Kardec está diante de um grande
dilema. Os fenômenos de mediunidade ostensiva, como os raps, mesas girantes e
cestas falantes, do ponto de vista de sua origem, inscrevem-se no universo de
investigação do Empirismo e do Positivismo. Mas sua natureza e extensão
inscrevem-nos nas ciências do campo humano, do ponto de vista dos médiuns e,
simultaneamente, n esfera do incognoscível – o campo do Espírito, portanto,
transcendental.
O Prof. Rivail resolveu
competente e consistentemente a questão, para cuja solução foram indispensáveis
a inquestionável ousadia intelectual, a coragem da abordagem dialética, o
inquebrantável caráter conciliador, a inabalável confiança na proposta de
trabalho e no poder da razão – inaugurando o – apenas aparente – paradoxo da
metodologia do que poderíamos chamar de “positivismo transcendental” ou
“positivismo metafísico”, de que é exemplo máximo O Livro dos Médiuns.
Com isto, o Prof. Rivail
resolveu também as questões historicamente exclusivas da esfera da fé,
integrantes de correntes teológicas desgastadas e que não mais se sustentavam –
e assim estatuiu intelectualmente a fé raciocinada. Ou seja, codificou na
linguagem intelectual da filosofia e da ciência o recado espiritual de
conciliação, de que tudo está em tudo. Pôs o constructo teórico do Empirismo e
do Positivismo a serviço da metafísica, conciliando o que era tido como
inconciliável. Uma tarefa de gigante.
Por isso não é de se estranhar
que a formatação, a estrutura e o arcabouço formal da Codificação da Doutrina
Espírita sejam positivistas com sua seqüência lógico-objetiva, perguntas
encadeadas, esquemas, classificações, hierarquizações, exemplificação e
correlação com a chamada realidade objetiva – enquanto que seu conteúdo é
predominantemente de natureza transcendental, metafísica, como a existência de
Deus e do Espírito, a imortalidade da alma, e a comunicabilidade entre os
planos da vida.
Mas a coragem intelectual do
Prof. Rivail/Kardec não para aí. Ele mobilizou os vastos recursos que como
Espírito armazenou ao longo de encarnações, que ele certamente aproveitou como
verdadeiras jóias, para ser também uma espécie de profeta, codificando as
antecipações veladas ou não que os Orientadores Espirituais da Humanidade nos
traziam. Em suas Notas preciosas, que ele acrescentou valorosamente às
instruções desses Benfeitores Espirituais, Kardec sustentou, com linhas
argumentativas de natureza filosófica e científica, todas as predições que o
Espiritismo oferecia aos homens e que a ciência nada mais tem, feito senão
corroborar, confirmar.
Deste ponto de vista, o Prof.
Rivail/Kardec torna-se o profeta ou co-profeta na antecipação das conquistas
que hoje vão estruturando, corporificando diante de nós, nos vários campos de
atuação da humanidade.
Outros aspectos grandiosos da
marca inconfundível do processo de Codificação da Doutrina Espírita podem
também, e ainda, ser levantados e alinhados. Mas o que aqui dissemos não basta
para que ele se erga como O Codificador, esteio encarnado para a
consubstanciação da promessa de Jesus à Humanidade?
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